03 janeiro, 2007

A fé na crença

Segui com muito interesse o debate Beyond Belief '06 de que partilhei abaixo uma das intervenções menos susceptíveis de causar polémica. As partes disponíveis no YouTube pecam um pouco por não nos dar muito da argumentação pró-fé, tirando uma parte em que um representante da Templeton Foundation diz que os cientistas que escrevem livros defendendo a ciência e atacando a religião, o fazem por dinheiro. Enfim.

De qualquer modo, parece-me sempre pertinente reflectir sobre estes assuntos. Num mundo em que o presidente da mais poderosa nação diz que Deus lhe diz para fazer coisas, e em que os seus mais virulentos opositores estão dispostos a matar-se e mais quem os acompanhar, entre outras coisas em nome da sua fé, é bom perceber que vem a ser tudo isto.

De uma forma geral tenho tido uma relação pacífica com a religião que me envolve. A minha atitude foi sempre, no mínimo: "É com cada um, desde que não me chateiem". E mais do que uma vez, muito depois de ter interiorizado plenamente o meu ateísmo, participei em rituais, simulei orações e até encorajei crentes. Em nome de uma espécie de tolerância, e crença firme num lado benévolo da religiosidade. O lado que tranquiliza, que dá sentido, que preenche vazios.
Dizia para mim "Eu não preciso, mas há quem precise. E mal não faz."

Hoje sou menos tolerante. E numa destas intervenções de Beyond Belief '06 alguém sintetizou a melhor razão para questionar a religião, mesmo moderada.
Quando se ensina que acreditar sem provas ou argumentos racionais é, em si, uma virtude, está aberta a porta da legitimação de todos os fanatismos.

As religiões têm passado imunes às mais básicas formas de critica. Se uma pessoa acredita numa estupidez qualquer, é um lunático, se uma pessoa acredita numa coisa igualmente improvável e descabida mas que tem a forma de crença religiosa, damos um passo atrás e mantemos no mínimo uma distância e um silêncio respeitosos.

Como ilustra Sam Harris: Se um tipo acorda de manhã, diz umas palavras em latim sobre os seus flocos de cereais e acredita que eles se transformam assim no corpo de Elvis, é maluco.
Se o diz sobre uma hóstia, na missa, é católico.

Sermos católicos ou protestantes, ou hindus ou muçulmanos é apenas um acaso geográfico. Achar que por isso temos uma visão superior da cosmologia, da moral é apenas uma forma muito básica de etnocentrismo. Ou então temos a infinita sorte de ter nascido precisamente na unica religião que está certa. Ou o infinito mérito de a termos descoberto pelo nosso percurso pessoal, que também os há. Não me parece.

Outro argumento importante é que todos somos ateus de outros deuses que não o nosso. Vishnu? Não existe. Zeus? Um mito. Odin? Não me façam rir. Deus, o da Bíblia? Isso é outra coisa. Mas como? Porquê? Porque sim. Há os evangelhos, há 2000 anos de tradição, há milagres.
Como se as outras religiões não tivessem isso tudo.

E mesmo os budistas, (e tu sabes quem és ;) ), bem faziam em ouvir as palavras sábias do seu mestre:

"If science proves some belief of Buddhism wrong, then Buddhism will have to change."


Isto sim, é uma procura da Verdade, de verdade.

15 comentários:

Anónimo disse...

Não me parece que a crença irracional em alguma coisa não me parece um mal em si (até porque pode servir de uma boa bengala), mas sim o "mau" uso que disso se faz. O que tb pode acontecer com qualquer crença dita racional.
(Aliás, superioridade da razão, por si só, como forma de agir ou de nos relacionarmos com o real parece-me questionável)
sandra

L. Rodrigues disse...

Sandra,
É questionável, certamente. A ciência não abaca todas as experiências humanas nem tem o monopólio do conhecimento. Mas o que está em causa é a razão poder ser questionável mas a fé, pelos vistos, não. Não é honesto.

Anónimo disse...

If you don’t believe in any kind of magic or mystery basically you are good as dead.
Albert Einstein

L. Rodrigues disse...

"The most beautiful thing we can experience is the mysterious. It is the source of all true art and all science. He to whom this emotion is a stranger, who can no longer pause to wonder and stand rapt in awe, is as good as dead: his eyes are closed."
Albert Einstein

O que Einstein valoriza é o sentimento de mistério e maravilhamento que nos faz fazer perguntas e coloca desafios. Não implica uma atitude acrítica, como é bom de ver.

Anónimo disse...

Fanáticos há-os em todos os quadrantes, dentro e fora das religiões. Até há ateus fanáticos (não será isso também uma espécie de religião?). Não sei se é intencional, mas o tom do teu post enferma da crítica que fazes às religiões. No fim da leitura, fico com a sensação de que afinal também tu tens uma visão superior.

L. Rodrigues disse...

FCaldas,
Se estivermos convencidos de que existe uma realidade independente das nossas percepções, e que há diversas formas de abordar e compreender essa realidade, considero sim que a ciência é uma forma superior de o fazer.
Mas uma visão científica é superior precisamente por ser humilde, ao estar pronta a recuar face às evidências.
Quanto a haver fanáticos em todo o lado, é possível, mas prefiro lidar com alguém excessivamente razoável do que com o oposto.

L. Rodrigues disse...

P.S. Fcaldas,

Foi preciso um tema destes para te fazer sair da toca :D, ;)
Beijo.

Anónimo disse...

Aceito sem reservas que prefiras olhar a realidade através da ciência. Questiono a tua afirmação da sua superioridade com base nessa humildade de que falas. Na verdade, nada tem a ver com humildade mas com a definição da própria ciência, enquanto conhecimento validado. Se não recuasse face às evidências, como dizes, não poderia continuar a ser ciência, seria outra coisa qualquer. Considero que ciência e religião (nota que não me refiro a nenhuma em particular), entre outras coisas, são igualmente importantes para o equilíbrio do homem. Falhando uma, o equilíbrio está necessariamente comprometido. Já agora, e também pela sua própria definição, nenhum fanático, religioso ou ateu ou desportivo outra coisa qualquer, será alguma vez razoável.

Ainda bem que me fizeste sair da toca. Estes assuntos “superiores” sempre dão um colorido à vidinha de todos os dias hehehehe ;) beijinhos pa ti tb

L. Rodrigues disse...

Quando falo de ciência, claro, não me refiro apenas à fisica e à biologia, à hidraulica e à astrofísica.
Há dimensões humanas que não passam sequer pelo conhecimento "cosmológico", científico ou não, mas sim, e são essas porventura as mais importantes, pelo universo das relações entre as pesssoas. Estou convencido de que uma boa parte dos preceitos éticos e morais prescritos pela maioria das religiões se prendem precisamente com regras de convivência. O problema das religiões é que de uma forma geral restringem essas regras ao universo dos crentes. "Não matarás" mas se for um infiel faz-se uma excepção...

Considero que os afectos, a solidariedade, o sentido de propósito que somos impelidos a encontrar, têm explicações e motivações que não carecem do sobrenatural.

Até posso acrescentar de que há indicios de selecção natural do sentido do religioso. O que apenas quer dizer quem em dada altura da nossa história evolutiva isso foi uma vantagem sobre outros que não o tinham.
Mas isso não confere automaticamente existência às entidades em que essas estruturas cerebrais nos levam a acreditar.

João Villalobos disse...

Essa era para mim, não? :)
A ciência nunca contrariará o Budismo. O Budismo não cabe, sequer, no âmbito deste post. Não é uma religião nem há nele lugar para a fé. O que há é uma filosofia de vida assente nas Quatro Nobres Verdades. Se as leres e desenvolveres a última delas, o Óctuplo Caminho, verás que o que é pedido ao percorrer esse caminho é difícil de cumprir, mas muito distante de fundamentalismos religiosos ou dogmas de qualquer espécia.
Porfiai!

L. Rodrigues disse...

Era para ti, mas nem era acerca do budismo, em si.
Um abraço e vai ver o post acima a ver se gostas.

Anónimo disse...

Até os gajos mais pragmáticos (considero-me um deles) têm dificuldade em concordar contigo, Luís. Parece-me que não serias um Cruzado da Fé, justificando todos os seus actos através dela, mas se houvesse Cruzados da Ciência já te estou a imaginar montado num cavalo branco com uma armadura de kevlar e liga leve com um grande C no peito, empunhando o compêndio Science For All numa das mãos. É que "ele há coisas que não se explicam", amigo. Quer queiras, quer não. Mas pronto, desta vez o assunto revala para para o radicalismo e isso quer dizer que vais ficar com a tua e eu com a minha.

P.S. - E olá Filipa... que prazer... ler-te. Bjos.

L. Rodrigues disse...

Há coisas que não têm explicação.
É verdade. Concordo.

O que significa das duas uma:
1- Que a explicação não é Deus.
2- Que Deus não é uma explicação.


(quem diz Deus diz qualquer recurso ao sobrenatural)

Anónimo disse...

Ou, também...
1. Que a explicação não é Ciência
2. Que a Ciência não é explicação

L. Rodrigues disse...

Não. Significa que a ciência AINDA não conhece a explicação. E pode nunca vir a saber.
Mas isso não significa ainda que haja uma explicação sobrenatural.

Não se pode explicar uma coisa complexa, quando para o fazer se tem que inventar uma coisa ainda mais complexa, que está imune a tentativas de explicação.

Os limites da ciência ainda estão longe mas existem. Há, por exemplo, uma boa possibilidade de nunca sabermos o que aconteceu "antes" do Big-Bang. Mas qualquer entidade que fique para lá dele é por definição irrelevante.