23 fevereiro, 2006

Público vs Privado

A eterna tensão em que se faz a política. Individual e colectivo, liberdade e responsabilidade.

A actual doutrina económica dominante dita que privado é que é bom. Deixemos os mercados funcionar, deitemos abaixo fronteiras e leis constritoras. O privado é dinâmico ágil, moderno e ambicioso. O público é lento, retrógrado, burocrático e desmotivado. A cobiça e o lucro são os grandes motores do progresso. A "solidariedade" e a "distribuição de riqueza" incentivam a preguiça e o parasitismo. O mercado cria, e os governos apenas devem ter como missão deixá-lo seguir o seu curso "natural".

Estas ideias não são novas. Foram postas em prática de forma dramática na Inglaterra da revolução industrial. Na altura, cerca de 1820, emergia uma classe política anglicana evangélica que acreditava que a pobreza era uma provação divina destinada à expiação dos pecados. Contrariar de forma directa esta pobreza, era perverter o plano divino, que pelo sacrifício e sofrimento no quotidiano levaria à salvação das almas. Ajudar um pobre é condená-lo ao inferno. No polo oposto, os heróis da indústria incarnavam a virtude e o triunfo da justa vontade.

Esta doutrina foi levada a extremos em pelo menos dois casos que nos deviam fazer reflectir sobre os critérios para definir "Holocausto".

Um deles foi a conhecida Grande Fome da Irlanda.
Dela sabíamos que causou 1 milhão de mortos e outros tantos emigrantes. Que a dependência de uma única fonte de alimento se revelou desastrosa quando a praga atacou. Em dois ou três meses deixou de haver batata, a base e sustento de toda a população rural. O governo inglês inicialmente tomou medidas para minorar o desastre, importando milho das américas. Mas uma mudança de responsável para um ferveroso crente na não interferência, que atribuía o desastre ao laxismo dos irlandeses, interditou o processo. Na sua perspectiva, era uma oportunidade de modernizar a Irlanda: se a fome forçasee os pobres a migrar para as cidades, provocaria uma subida da oferta de mão de obra barata o que possibilitaria uma explosão industrial na Irlanda. Assim, os irlandeses poderiam fazer a sua expiação e encontrar a redenção. O resultado foram os acima citados números de mortos e emigrados, e a população reduzida a 3/4.

Outro foi menos conhecido, talvez porque aconteceu num lugar mais distante.
Cerca de 1876, uma seca afectou uma parte da Índia. A então colónia britânica possuía um excedente de arroz e trigo, mas o vice-rei Lord Lytton decidiu que nada devia impedir a sua exportação para Inglaterra. Sob feroz imposição administrativa, foram passadas leis para impedir actos de caridade. O único acto autorizado era o trabalho agrícola forçado, em condições tão deploráveis que a mortalidade atingiu o equivalente a 94% anuais, por mês. De acordo com algumas referências, a dieta de um trabalhador agrícola indiano neste periodo era pior que a dos prisioneiros de Buchenwald.

Além disso, mesmo regiões que tinha tido colheitas excepcionais nos anos anteriores foram sujeitas à mesma centralização e exportação dos recursos. Entre outros empreendimentos estava em causa o financiamento de uma guerra no Afeganistão.
Entre 1876 e 79 morreram entre 12 e 29 milhões de camponeses indianos.

Podemos pensar que uma coisa destas seria impossível nos nossos dias. Sim, talvez. Mas a mesma crença cega de que o mercado tudo resolve, que os governos não devem ajudar e proteger os seus cidadãos mais vulneráveis, que a saúde, a água, a educação, por exemplo, podem ser entregues às leis do mercado, está mais viva do que nunca.

Aqui há uns anos lembro-me de ver um debate sobre economia. Lá estava um senhor de barbas que de vez em quando aparece junto de políticos. Presumo que seja um economista. Dizia ele em defesa dos mercados livres, falando das crises e das injustiças sociais:

"Isto são as dores do crescimento... a civilização ainda é jovem, na história da humanidade. Se deixarmos as coisas seguirem o seu curso natural, daqui a uns 500 anos estará tudo bem."

Ainda hoje me espanto.

Referências para este texto sairam daqui e daqui.

20 fevereiro, 2006

Quem sabe faz a hora... passar.

É raro, mas quando quero consigo passar um fim de semana inteiro em que não aprendo absolutamente nada. Quando quero não pensar, não saber, não fazer, sou um verdadeiro perito. Aqui há uns anos, demasiado largos para ficarem bem a seja quem for, li um livro em inglês onde aprendi uma palavra que, tanto quanto na altura pude apurar, não existia na língua portuguesa.
O que me pareceu inacreditável porque nos assenta tão bem: "procrastination".
Muito depois vim a consultar alguns dicionários onde já aparecia "procrastinação", "procrastinar" etc... Enfim, mesmo que existisse não era, nem é, muito usada.

Para quem não saiba, procrastinar significa adiar. Deixar para amanhã o que podíamos fazer hoje. A mais portuguesa das acções. O acto de não fazer nada e esperar que o tempo nos obrigue a fazer, ou que afinal faça com que já não seja preciso. Nisso, sou indubitavelmente, o maior dos patriotas. De vez em quando com vergonha e remorso.

Mas é como diz Steven Wright, os que trabalham são recompensados no futuro, os que preguiçam, são recompensados de imediato.

17 fevereiro, 2006

Velho provérbio Hebreu

"Se tu não fores por ti, quem será?
Se fores apenas por ti, o que és tu?"
(ainda retirado da mesma fonte que o excerto anterior)

Por vezes acho que a Humanidade já sabe tudo o que precisa de saber. O problema é fazer 5 biliões recapitularem a matéria dada nos últimos 100 000 anos.

15 fevereiro, 2006

Não é preciso ser um génio

"Private capital tends to become concentrated in few hands, partly because of competition among the capitalists, and partly because technological development and the increasing division of labor encourage the formation of larger units of production at the expense of the smaller ones. The result of these developments is an oligarchy of private capital the enormous power of which cannot be effectively checked even by a democratically organized political society. This is true since the members of legislative bodies are selected by political parties, largely financed or otherwise influenced by private capitalists who, for all practical purposes, separate the electorate from the legislature. The consequence is that the representatives of the people do not in fact sufficiently protect the interests of the underprivileged sections of the population. Moreover, under existing conditions, private capitalists inevitably control, directly or indirectly, the main sources of information (press, radio, education). It is thus extremely difficult, and indeed in most cases quite impossible, for the individual citizen to come to objective conclusions and to make intelligent use of his political rights."


Albert Einstein, 1949

E no entanto...

(para os interessados que não tenham notado, clicando no nome e data, poderão ler o artigo de onde retirei este pedaço)

14 fevereiro, 2006

Exorbitantes metades

Uma coisa que me deixa sempre infinitamente intrigado é a constatação de que as mulheres se queixam de que não há homens. Por vezes vem com um "de jeito" agarrado, o que ainda pressupõe que sim, que há mas não prestam, e aí ainda se pode colocar o ónus no irrealista grau de exigência de quem faz a afirmação... mas a verdade é que é assim, ao que parece cada vez há menos homens "elegíveis".

Tenho uma teoria:

Baseia-se em alguns factos psicológicos e sociológicos.

Facto psicológico: as mulheres escolhem o parceiro (depois da inteligência e bondade) por critérios de status, riqueza, estabilidade ou, se os parceiros forem demasiado jovens para os ter, pelo seu potencial para os adquirir.
(antes que as senhoras se revoltem, não estou a inventar nem a recorrer a clichés, refiro-me a um estudo feito pelo psicólogo David Buss em 37 sociedades diferentes um pouco por todo o mundo, pode ser consultado aqui)

Facto sociológico: há muito mais mulheres a ter a sua própria capacidade financeira, status, riqueza e estabilidade.

Facto Psicológico: Mulheres que têm essas qualidades continuam a procurá-las (na verdade ainda as valorizam mais) nos homens. A tendência é sempre para olhar para cima na escala social.

Facto sociológico (e económico e político): As sociedades modernas, nomeadamente a "ocidental" e Portugal talvez mais que o resto da Europa, estão cada vez mais polarizadas entre ricos e pobres, ou seja a faixa dos homens que se apresentam como elegíveis é progressivamente mais pequena, com o estreitamento das classes médias.

Já estão a ver onde estou a chegar... a culpa das mulheres não encontrarem homens que achem atraentes é do neo-liberalismo. De todos os males que aquilo traz ao mundo, acreditem que este não será o mais trivial.
Por outro lado, poucas coisas são tão passíveis de causar uma revolução como a defesa de um lugar na herança genética da espécie. As sementes da mudança podem estar nos testículos e ovários dos destituidos.

13 fevereiro, 2006

Rir

Uma pessoa sozinha ri trinta vezes menos do que na companhia de outros. Mas nesta segunda-feira de manhã, no meio de trinta pessoas, apetece tudo menos rir.

08 fevereiro, 2006

Há quinze anos, na rua do Carmo

O homem passou a mão várias vezes desde a nuca até ao princípio da testa, de quem vem de cima, percorrendo a calva. Face ao ar atónito do amigo respondeu-lhe, hesitante:
- Sabes... A minha cabeleira... estava farta...

07 fevereiro, 2006

O Fenótipo Expandido

O titulo deste texto é a tradução directa do título daquela que Richard Dawkins considera a sua obra magna. O seu maior contributo para a ciência.

Vem ele a propósito de uma ideia que me andava a saltar dentro da cabeça mas que não havia maneira de assentar e ganhar uma forma que fosse minimamente apresentável. A ideia de uma ecologia das Culturas e da História. Ou seja, que cada modelo de sociedade, de organização, de desenvolvimento, tem origem e sucesso num certo contexto. Esse contexto é composto necessariamente pelas condicionantes naturais (recursos) e as culturas com que se relaciona, competindo ou não.

Isto tudo era uma tentativa de construir uma justificação para a intuição de que a imposição a nivel global de modelos económicos que foram bem sucedidos num certo contexto geográfico e histórico, acarreta consequências nefastas e deprimentemente previsiveis. O equivalente social de um "Prestige" ou "Exxon Valdez" à escala planetária. (O que de resto é menos metafórico do que se pensa, se considerarmos fenómenos como o da emissão de gases ou destruição de florestas.)

O Fenótipo Expandido pode ser a metáfora que procurava para explicar o que queria dizer. Para os menos familiarizados com esta terminologia convém explicar o que é um fenótipo. É um termo da genética que designa a manifestação de um gene, a sua tradução física. Como a cor dos olhos ou a hemofilia.

A definição clássica de fenotipo cingia-se ao corpo do indivíduo portador dos genes. A revolução conceptual que Dawkins propõe é que os genes que um indivíduo transporta manifestam-se também no ambiente, nomeadamente nos outros individuos.

Esta forma de pensar derruba a visão de unidades discretas com que normalmente se olhava a biologia. As fronteiras entre um individuo e o que o rodeia é menos marcada.

Transportada para a história, sociologia, economia, leva-nos a considerar como mais difusas as fronteiras do que chamamos cultura, sociedade, civilização. Uma visão defendida, por exemplo, por Andre Gunder Frank nas suas propostas para uma nova historiografia, onde ele defende a abolição dessas categorias.

Aqui parece encontrar-se uma contradição, se a primeira ideia, de "nicho ecológico", parece dar relevo e valor à diversidade da experiência humana, a segunda diz-nos que essa diversidade não é descontínua, e o que nos leva a desvalorizar as diferenças.

Mas é precisamente aí que se desfaz o paradoxo:
A unidade na diversidade. A diversidade na unidade.
A Humanidade é uma entidade plural. Uma só, e diversa.

Este post, que reconheço ser um pouco confuso, e já foi reeditado depois da primeira versão, mesmo que não diga nada a mais ninguém, ajudou-me a mim a perceber o que dizia Frank, ele sim, no seu livro ReOrient "Unidade na diversidade".

06 fevereiro, 2006

Porque sim.

Lendo uns posts abaixo, pode ver-se o que escrevi sobre algumas coisas que se sabem sobre o amor romântico. Nomeadamente que ele não é para entender, mesmo.

Pelos vistos, há coisas assim, que quanto menos se pensa nelas, mais nos dão. Melhor o usufruto.

Um curioso estudo colocou um conjunto de sujeitos face a quadros. Pediu-se a todos que escolhessem um favorito. A metade do grupo foi pedido que escrevessem em detalhe as razões da escolha, enquanto à outra metade não. E depois todos levaram os seus quadros favoritos para casa.

Passado umas semanas, foram feitas entrevistas a todos. Os que tinham sido chamados a dizer as razões da sua escolha mostraram muito menos satisfação e agrado do que os restantes, que continuavam encantados com o seu quadro.

Nestas coisas de gostar, parece que "Porque sim" é a melhor das razões.
Ou como diria o homem da anedota: "Gosto, porra!"

02 fevereiro, 2006

Words to live by

Alguém, algures na Internet escreveu isto acerca da felicidade:

"Don't try to feel great all the time - that's not the way life works"

01 fevereiro, 2006

Contra corrente

Através dos Prazeres Minúsculos, chega o seguinte desafio:
"Cada bloguista participante tem de elencar cinco manias suas, hábitos muito pessoais que os diferenciem do comum dos mortais. E além de dar ao público conhecimento dessas particularidades, tem de escolher cinco outros bloguistas para entrarem igualmente no jogo, não se esquecendo de deixar nos respectivos blogues aviso do "recrutamento". Ademais, cada participante deve reproduzir este "regulamento" no seu blogue."

Cinco manias, hábitos que me diferenciem... Não sei se me diferenciam, porque não sei se as outras pessoas as fazem ou não.

1.
Além de ignorar todas as correntes que me chegam por e-mail também ignoro apelos, pensamentos poéticos, powerpoints com imagens tranquilas, e tudo o que tenha como assunto"Muito giro". A propósito, deste lado o jogo pára aqui, a não ser que um leitor ocioso o queira levar para o seu blog.

2.
Não mantenho plantas ou animais em casa. Já tenho a morte de um gerânio na consciência. Tudo o que lá vive é de sua livre e espontânea iniciativa.

3.
Quando espremo uma borbulha, ponto negro ou outra insubordinação cutânea olho sempre para o que ficou na unha. Ainda não sei se é uma curiosidade escatológica ou uma afirmação de poder.

4.
Quando saio de casa bato sempre em três partes do corpo diferentes. Pode parecer estranho, mas é só a confirmar a presença da carteira, das chaves e do telemóvel. Esta não me faz muito diferente, provavelmente.

5.
Quando ando na rua tenho sempre a sensação de que sou eu que me desvio do caminho das outras pessoas e nunca o contrário.

Se alguém quiser pegar no testemunho, esteja à vontade.