29 março, 2007

O Inimigo

Nos anos 60 o psicólogo de Yale Stanley Milgram iniciou uma série de experiências sobre autoridade e obediência. Ao que parece a inspiração para o projecto veio do julgamento de Adolf Eichmann, e da defesa invocada "Estava apenas a cumprir ordens".

Nestas experiências havia 3 participantes: o Experimentador, o Mestre e o Aluno. Destes, o Mestre era o sujeito da experiência e o Aluno um actor, mas sem o conhecimento do sujeito.
Ao mestre era descrita a experiência como destinada a testar o desempenho da memória em situações de limite físico.

O Aluno tinha como tarefa decorar pares de nomes e, por cada erro, o Mestre tinha que administrar um choque eléctrico progressivamente mais forte. Havia uma cônsola com uma série de botões de voltagem crescente, sendo o máximo 450 V, havendo ainda mais dois vermelhos e com a designação de "XXX".

No decorrer da experiência os Mestres eram levados a causar, acreditavam eles, extrema dor física no Aluno.
Quando o Mestre hesitava, o Experimentador incitava, segundo uma hierarquia estabelecida para toda a experiência: "Por favor continue", "A experiência exige que continue", "É absolutamente essencial que continue", "Não tem escolha, tem que continuar".

Antes de divulgar os resultados, é curioso saber que Milgram sondou os seus colegas do departamento de Psicologia, e estes acreditavam que apenas uma minoria sádica levaria a experiência até ao fim.

Na realidade, 65 % dos sujeitos do primeiro grupo de experiências, levou a experiência até às 3 descargas de 450 Volts que constituiam a punição máxima. Nesta fase, já o Aluno estava aparentemente inconsciente e mais de 200 V antes já tinha pedido para ser retirado da experiência, no meio de muita agonia.

Nenhum dos participantes teve que ser incitado a aplicar punições até aos 300 V.

Seguir ordens e submissão à autoridade, é algo que é útil e nos ajuda a sobreviver enquanto crianças. E é algo que nos fica. É psicologicamente reconfortante, desresponsabilizante. E é subtil, porque acreditamos infinitamente em nós e no nosso livre arbítrio mesmo quando agimos como robots.

Esta história, que eu já conhecia mas não com todos os detalhes, é esmiuçadamente contada na conclusão de "The Authoritarians". O ponto do autor é lembrar-nos que sim, há para aí uns individuos extremamente autoritaristas e conformistas, mas todos, todos, estamos sujeitos a agir da mesma maneira, assim se reúnam as circunstâncias.

26 março, 2007

O Carteiro

Recentemente, numa região rural de França, o carteiro Laurent Mallard foi acompanhado na sua ronda por um organizador/analista que tinha por missão avaliar o tempo da ronda e optimizá-lo.

Mallard tem por hábito trocar apertos de mão com as pessoas a quem leva as cartas e volumes, e não se escusa a levar pão, tabaco ou medicamentos a quem lho pede, já que falamos de gente envelhecida, sem meios de locomoção e isolada. Isto deve ter causado horror ao analista, e Mallard recebeu uma punição.

(este parágrafo, agora, é plágio:)
Este é um caso exemplar de desperdício, visto do ponto de vista de um economista neo-clássico. O carteiro ao envolver-se em actividades não lucrativas para a empresa onde trabalha, está a colocar em causa a eficiência desta e a sua competitividade no mercado.
Um neo-clássico também defenderia que aquela gente que beneficia dos serviços extra do carteiro não está a contribuir para o PIB. O que estaria certo era contratar os serviços de alguém em vez de suportar um esquema informal e impregnado de iniquidade já que está à mercê das simpatias do carteiro. Um operador neutro que apenas vise o lucro garantiria um melhor serviço.
(fim de plágio)

O que parece uma anedota, é um exemplo vivo e acabado do que é a visão da sociedade pelos olhos de um neo-liberal. Como dizia a sra Thatcher: não existe sociedade. Como é que se pode acreditar nisto e ser ao mesmo tempo governante? Governante do quê?

E o Barroso vai pelo mesmo caminho, a julgar por algumas citações que vi. É por isso que não pode ser gente desta a decidir como vai ser a Europa dos próximos 50 anos.

22 março, 2007

A Grande Transformação

Hoje recebi pelo correio o meu "The Great Transformation" de Karl Polanyi.
Ficará provavelmente suspensa a leitura de "Os Autoritários".
Que eu saiba, a única tradução para português de Polanyi foi uma edição brasileira. O livro foi publicado em 1944, mas o autor começou a trabalhar nele em 1930. Trata-se de uma análise histórica social política e económica das transformações ocorridas na Europa nos cento e poucos anos anteriores. Para muitos, a mais completa e fundadora crítica do liberalismo económico, hoje tão em voga.

A edição que tenho em mãos tem introdução de Joseph Stiglitz, Nobel da Economia, ex-economista chefe do Banco Mundial, e professor em Stanford.

A dado momento escreve Stiglitz:
"Today there is no respectable intellectual support to the proposition that markets, by themselves, lead to efficient, let alone equitable, outcomes".

Um passeio pela nossa blogosfera "liberal" deixa transparecer que há para aí muito intelectual pouco respeitável.

Se "The Great Transformation" for metade do que promete, vêm aí muitos e suculentos posts. A ler vamos...

20 março, 2007

Os "Autoritários"

Tenho andado a ler o livro "The Authoritarians" de Robert Altemeyer, um professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Manitoba. Se há uma autoridade em Autoritários, ou na mente destes, é este homem.

Os Autoritários estudados neste contexto não são, ao contrário do que se poderia pensar, os ditadores e déspotas que volta e meia emergem nas mais variadas posções de poder, umas mais ou menos inofensivas, outras registadas na História com vastos números de vítimas. São antes os que se submetem e dão poder àqueles, porque acham que assim estão a fazer o que é certo.

O autor admite desde logo haver um limite à sua base de estudo. Embora ele reconheça que existem Autoritários de "esquerda" (género Seguidor Cego do Lider Revolucionário) esse espécimen é raro nos ultimos 20-30 anos na América do Norte. Assim, assumidamente, o livro é sobre os outros, muito mais comuns naquelas bandas, os RWA, Right Wing Authoritarians.
Antes que perguntem, ele considera que, neste contexto, o autoritarismo existente no bloco soviético era essencialmente de "direita". Eu depois de ler uma boa parte do livro, não sei se sequer faz sentido fazer essa distinção, mas se ele acha que sim, quem sou eu?

O perfil traçado, de uma forma geral, é o que se espera: um seguidista, inseguro, acritico, preconceituoso, etnocentrico e frequentemente fundamentalista religioso. Há uns completamente assim, uns que nascem assim, há uns que são educados assim, mas a vida endireita-os um pouco, e quase toda a gente tem um pouco disto, claro, que em psicologia a coisa é mesmo assim.

A leitura até agora feita suscitou-me duas reflexões: uma sobre o caso português e o nosso "amor" por uma autoridadezinha...
Um dos traços formadores de uma personalidade RWA é o estreito espectro de experiências. Tipicamente um RWA tem pais RWA, amigos RWA, e mantém a uma distância segura tudo o que seja susceptivel de ferir a sua pureza moral. Filmes, livros, ideias, pessoas, que não pertençam ao seu universo são por definição errados, perversos, antipatrióticos e indesejáveis.
Normalmente um RWA fica menos RWA depois de contactar durante algum tempo com, por exemplo, homossexuais ou pessoas de outras raças ou convicções politicas e verificar que elas não cheiram a enxofre.
Pensei no caso português, que confinados neste cantinho da Europa, para o bem e para o mal, terá sido o maior dos males não sermos um lugar de cruzamento de experiências, vivências e ideias. O nosso universo de possibilidades sempre foi relativamente pequeno, e mesmo quando ele se tornou do tamanho do Mundo, isso apenas foi assim para os poucos que partiam. Os que ficavam, (e alguns tinham que ficar) apenas podiam invejar e temer o que não conheciam.

A outra reflexão que me ocorreu, prende-se com a influência que estas pessoas acabam por ter na vida pública. Como são um público fácil de conquistar e mobilizar, tornam-se alvos preferidos de demagogos e ditadores de pacotilha. A situação actual dos EUA ilustra bem as consequências disso. Como continuar a ser democrata e tolerante e ao mesmo tempo tentar limitar o poder de um rebanho em pânico?

Fica uma pequena história relatada no livro. No Departamento de Psicologia é volta e meia jogado um jogo de gestão do Mundo. Imagino que sirva de teste para grupos de diversos perfis. Neste caso fizeram o jogo ser jogado primeiro por um conjunto de baixo indice RWA, e depois por um grupo de alto nivel RWA.
Os de baixo nível RWA conseguiram o melhor resultado de sempre, de todos os grupos que jogaram aquele jogo, com 40 anos de paz mundial e apenas algumas centenas de milhoes de mortos, porque mesmo assim não conseguiram resolver o problema da fome no 3º mundo.

Os de Alto nivel RWA, ao fim de 4 anos tinham deflagrado uma Guerra Nuclear e exterminado toda a população da Terra.

Acho que ainda voltarei a este assunto e a este livro...

13 março, 2007

Henry George, 2



Ambrose Bierce
(The Devil's Dictionary, 1911) "LAND, n. A part of the earth's surface, considered as property. The theory that land is property subject to private ownership and control is the foundation of modern society.... Carried to its logical conclusion, it means that some have the right to prevent others from living; for the right to own implies the right exclusively to occupy; and in fact laws of trespass are enacted wherever property in land is recognized. It follows that if the whole area of terra firma is owned by A, B and C, there will be no place for D, E, F and G to be born, or, born as trespassers, to exist."

Desde que penso nisso me faz confusão o conceito de propriedade da terra. Ou da Terra. Ainda bem que encontrei mais quem pensasse no assunto. Um pedaço de chão que está ali há milhões de anos, e estará milhoes de anos depois de desaparecermos, dificilmente se pode reclamar de "nossa". A posse privada e incondicional de Terra é, arrisco dizer, a mãe de todas as causas de conflito, desigualdade e pobreza.

12 março, 2007

Quem tramou Henry George?

Só recentemente ouvi este nome pela primeira vez. Tendo em conta que é um economista americano do século 19 cujas ideias foram abandonadas pelas academias isso não é muito estranho.

Já se torna mais interessante se, de acordo com alguns autores, o esquecimento do seu nome tiver sido premeditado, deliberado e, até, orquestrado.

No seu livro "Progress and Poverty" Henry George considera três meios de produção de riqueza: propriedade, trabalho e capital. As propriedades geram rendas, o trabalho gera salários, o capital gera juros. A riqueza produzida por uma sociedade é a soma das rendas dos salários e dos juros.

A questão que George levantou foi uma questão moral: Porque é que um proprietário de terras há-de beneficiar do simples acto de posse? Sendo que essa posse, em si, não aporta nada à sociedade, e é muito frequentemente fruto de pura sorte?

O pagamento de rendas gera um peso sobre os rendimentos de quem trabalha, como George verificou dramaticamente nas suas viagens pela Irlanda, e a especulação de terras gera pobreza, já que faz aumentar o preço das rendas.

George também defendia que todos as actividades tendencialmente monopolistas, como transportes e comunicações, fossem posse do estado, para benefício de todos.

"Progress and Poverty" foi um "best-seller" no seu tempo. Ainda detém o record do livro de economia mais vendido de sempre. Mas as ideias de George nasceram precisamente na época dos "Robber Barons", magnatas que fizeram as suas fortunas apropriando-se de terras e explorando monopólios. E estes foram os principais financiadores das Universidades Americanas onde nasceria a economia neo-clássica.

A Universidade de Chicago, em particular, terá sido criada para albergar, sob a asa de Rockefeller, os criadores de um discurso económico destinado a obliterar as ideias de George. Foram bem sucedidos. A tal ponto que hoje, ainda, é quase impossivel tentar reenquadrar a disciplina sem ser intitulado fantasista ou utópico.

05 março, 2007

Alguém me explica?

Porque é que ao abrigo do conceito jurídico de "Direitos adquiridos" uma cimenteira pode continuar a destruir um Parque Natural, mas o mesmo conceito parece ser inaplicável a direitos sociais como horas extraordinárias pagas, ou uma reforma decente, ou assistência médica gratuita?
(Se é uma questão de custos, gostava de ver os primeiros quantificados...)


Porque é que se confunde tanto "criação de riqueza" com "captura de riqueza"?
(Se os ganhos de produtividade revertem exclusivamente para os accionistas e CEO's, estão muito simplesmente a roubar, capturar para ser mais PC, a riqueza de quem produz mais...)


Porque é que, sendo uma premissa do capitalismo que quanto maior for o bolo mais há para todos, nunca parece ser boa altura para repartir o bolo?
(Se há crise, não se aumentam os ordenados para gerar competitividade, se está estável, não se aumentam ordenados para não desestabilizar, se há crescimento, não se aumentam os ordenados para não o travar.)

02 março, 2007

O Pai Adão

Porque é que os defensores da "Mão Invisível" dos mercados não parecem ter lido tudo o que escreveu Adam Smith?

But though in disputes with their workmen, masters must generally have the advantage, there is however a certain rate below which it seems impossible to reduce, for any considerable time, the ordinary wages even of the lowest species of labour.

A man must always live by his work, and his wages must at least be sufficient to maintain him. They must even upon most occasion be somewhat more; otherwise it would be impossible for him to bring up a family, and the race of such workmen could not last beyond the first generation.

...

We rarely hear, it has been said, of the combinations of masters; though frequently of those of workmen. But whoever imagines, upon this account, that masters rarely combine, is as ignorant of the world as of the subject.

Masters are always and every where in a sort of tacit, but constant and uniform combination, not to raise the wages of labour above their actual rate.

To violate this combination is every where a most unpopular action, and a sort of reproach to a master among his neighbours and equals. We seldom, indeed, hear of this combination, because it is the usual, and one may say, the natural state of things which nobody ever hears of. Masters too sometimes enter into particular combinations to sink the wages of labour even below this rate. These are always conducted with the utmost silence and secrecy, till the moment of execution, and when the workmen yield, as they sometimes do, without resistance, though severely felt by them, they are never heard of by other people.

Adam Smith - The Wealth of Nations