21 abril, 2006

Pedaços de natureza humana

Enquanto animais sociais estamos equipados com algumas ferramentas para estabelecer, medir e regular as nossas relações com os outros. Não é uma característica exclusivamente humana, mas é uma arte que refinámos de tal modo que chegamos a pensar que é isso que nos distingue das restantes criaturas com que partilhamos este planeta.

A teoria dos jogos* explica como agentes egoístas podem desenvolver estratégias de cooperação e altruísmo.
Quando inseridos num grupo, e sujeitos a repetidas situações que reclamam sacrifícios ora de uns ora de outros, depressa se desenvolve um consenso de que a nossa sorte hoje pode ser azar amanhã, e contamos com os outros para amortecer os nossos azares, e nós os deles.

Um exemplo simples é dado pelas tribos de caçadores, em que os despojos da caça são repartidos por toda a aldeia, independentemente de quem tenha encontrado e caçado a presa.

Um agente egoísta está sempre à espreita de oportunidades de fazer batota, e arranjar um almoço à borla. Para obviar essa tendência, evoluíram comportamentos e emoções como a vingança, a cólera, a culpa, um sentido de justiça, etc.

Prevalece na nossa cooperação o principio da reciprocidade. Ajudamos os outros porque sabemos, ou assumimos, que no futuro podemos ser nós a receber ajuda.
“Saber” pode induzir a ideia de que tudo isto são processos conscientes, mas na verdade esta escolha pode ser bastante inconsciente. Uma prova disso é que este sentimento de obrigação é tanto mais forte quanto maior for a nossa identificação com o outro, começando pelos laços de sangue.

Dizem os etólogos, e corrobora a Teoria dos Jogos que, quando um agente considera que não existe o potencial de receber de volta o seu contributo, exclui-se do jogo e deixa de cooperar.

Dando um salto para a sociologia do século 20, alguns autores descrevem como uma classe média alta surgida das medidas democratizadoras do inicio do século, com melhor e mais acesso a educação, saúde, etc., assume, no ultimo terço do século uma posição de distanciamento em relação às politicas que lhes proporcionaram o bem estar de que usufruem. Assim, vemos por todo o lado o apelo ao desinvestimento no público e o ênfase no privado.

Uns interpretam isto meramente como esquemas de perpetuação do poder conquistado. Visto à luz dos mecanismos sociais mais básicos descritos acima, vejo os sintomas dos “batoteiros”. Algo que também é explicável pela teoria dos jogos: quando o ambiente é mais benigno para todos, quando mais gente age de boa fé, tende a beneficiar o surgimento de agentes oportunistas.

Mas aquilo com que estes podem contar, é com a ira e a vingança dos que se sentem enganados. Se perderam a vergonha, arriscam-se a serem lembrados de que não perderam o medo.


*Teoria dos Jogos é um ramo da matemática que estuda situações estratégicas onde os jogadores experimentam diferentes acções no sentido de maximizar as suas vantagens. John Nash, que inspirou o filme "Beautiful Minds" ganhou um Nobel com isto.


4 comentários:

Vasco Pontes disse...

Já cá tinha estado, mas sem o estado de espírito para comentar.
Para dizer: muito bem pensado, ainda melhor explicado.Não quero dizer que concorde com tudo, mas penso perceber bem o espírito.
Abraço

L. Rodrigues disse...

Venha a discordância :). Admito que nestas reflexões sou por vezes pouco exaustivo, um pouco com medo de assustar os leitores menos empenhados... Isso pode fazer com que nem todas as ideias soem igualmente sustentadas. Além disso, posso sempre estar redondamente enganado, claro.

Anónimo disse...

Ai é? Não calo a minha discordância... ;)
Ao longo do século XX vejoessencialmente uma uma distribuição diferente das tarefas: nem só o privado cabe às mulheres, nem os homens têm já o dever de só se preocupar com o público (ou de o demonstrar).
Não vejo como se pode considerar que o ênfase no privado seja necessáriamente um desinvestimento no público.
A existir desinvestimento no público não percebo que seja que seja uma batotice.
Não consigo ver o desinvestimento no público, a existir, que cede o poder (politico e económico)a terceiros, como fruto de um egoismo, mas de desilusão (acredita-se que não se pode mudar o sistema).
E mais que o desinvestimento de uma classe média/alta, parece-me ser proveniente de diferentes gerações (considerar que é obrigação dessa classe dirigir os mais pobres e incultos é quase complexo de esquerda ;)
No resto, concordo :)
sm

L. Rodrigues disse...

Mas o sistema a que me refiro mudou, durante uns tempos, até os que ficaram mais próximo da mó de cima se esquecerem daquilo que os levou lá. Foi um sistema que hoje o "consenso" diz que está velho caduco e falido.