08 outubro, 2006

A traça e a luz

Com os devidos cumprimentos ao Misantropo Enjaulado que recentemente teve um tópico com o mesmo título, ou semelhante, aqui ficam algumas ideias para acabar de vez com a felicidade.
Com o tópico. Neste blogue. Pelo menos, de vez por uns tempos.

Por aqui abaixo já percorri algumas das causas apontadas para a incongruente escalada de depressões, insatisfações e desesperos destas sociedades em que vivemos. Onde temos cada vez mais e menos nos parece satisfazer. Algumas são sociológicas outras psicológicas, condicionadas pelas primeiras.

Agora vou esplanar as pistas apontadas pelo psicólogo David Buss. É um psicólogo evolucionista que se especializou nas relações entre os sexos.

A psicologia evolucionista, para quem não estiver a par, é uma disciplina que procura identificar as características da mente humana que são adaptações evolutivas. Traços que ficaram por sofrer selecção positiva em determinada fase da história evolutiva da Humanidade, 99% da qual foi passada em sociedades de caçadores-recolectores.
Um exemplo simples: os traços que achamos atraentes estão correlacionados com, nos homens, status, poder e dominância, e nas mulheres com fertilidade, juventude e saúde. Isto são generalizações, é certo, mas confirmadas pela experimentação.

O primeiro factor que ele aponta é então a substancial diferença entre o ambiente primitivo e o actual.

Numa sociedade tribal de 50 a 200 individuos a escolha de parceiros estava limitada uma ou duas dezenas. Na sociedade actual os potenciais parceiros são muitos mais e ainda os comparamos a todos com o bombardeamento mediático de exemplares perfeitos e altamente desejáveis.
Na sociedade tribal vivia-se em nucleos familiares extensos, actualmente vivemos em familias reduzidas, frequentemente isoladas entre outras familias anónimas.
Antes, podiamos contar com os nossos parentes para conseguir justiça e reparações por danos, agora temos que confiar em estruturas externas e frequentemente complicadas.
Ou seja estamos equipados para actuar com segurança numa certa escala, que a complexidade da vida moderna rebentou completamente.

Outro factor, são as adaptações que causam stress. São desenhadas para isso. Sentimos emoções negativas quando o nosso papel sexual é posto em causa, quando a nossa posição social é ameaçada, quando somos enganados por amigos etc etc. Há uma série de emoções que existem e sentimos com fortemente negativas porque foram determinantes na selecção dos nossos antepassados. Os que não as sentiram, ou que não as sentiram tão fortemente, não deixaram descendência.

O terceiro obstáculo à felicidade é o nosso desenho para a competição. A evolução actua sobre as diferenças, por isso o ganho de uns é a perda de outros. Os alemães têm a expressão "Schadenfreude" que designa mais ou menos o prazer que se tem na infelicidade dos outros. Será por isso que não resistimos a rir quando alguém cai no ridiculo, nem que seja na proverbial casca de banana? O maior duplo padrão não é o que existe entre homens e mulheres mas sim o que se cria entre nós e o resto da humanidade.

Outros factores por ele identificados foram já ilustrados no post sobre Felicidade Sintética. A nossa capacidade de nos adaptarmos a uma nova situação faz reduzir a longo prazo os efeitos do que pensávamos ser uma grande coisa. Um outro relacionado está na nossa avaliação afectiva de ganhos e perdas. Ficamos mais tristes por perder do que ficamos contentes por ganhar. Perder 100 é muito mais penoso do que ganhar 100 é agradável.

Acho que a pedra filosofal desta coisa toda está em usar a inteligência.
Da mesma forma que a traça foi seleccionada para ser atraida pela luz, presumivelmente a da lua, e acaba morta contra uma lampada, também muitos dos nossos traços ancestrais nos causam mais mal que bem se deixarmos.

Temos sobre a traça a vantagem de conseguir, munidos da informação suficiente, olhar para as nossa emoções e impulsos e perceber de onde vêm e onde nos levam.

Podemos restabelecer um pouco do ambiente primitivo dando mais valor à familia e amigos e estabelecendo mais profundos laços sociais.
Podemos reduzir o impacto da competição, apostando na cooperação. Isto faz-se, por exemplo, não colocando um prazo nas relações. Enquanto o futuro percebido for de interdependencia, a melhor estratégia é a de cooperação.
Podemos procurar deliberadamente as coisas que proporcionam felicidade, afinal também elas seleccionadas pela evolução: ajudar os parentes e amigos, viver saudavelmente, sentir intimidade, etc.

Afinal, porque há-de a nossa felicidade ser determinada pelo que fazia um Cro-Magnon ter mais filhos?

Neste ponto pelo menos há que dar ouvidos à personagem de Katherine Hepburn em "A Raínha Africana":
"Nature, Mr. Allnut, is what we are put in this world to rise above."

10 comentários:

Maria Carvalhosa disse...

Caro L.,
A propósito do comentário que deixaste no meu blogue, não posso deixar de exclamar: "as certezas que tu tens!!!" e de perguntar: "tens assim tantas certezas em relação a tudo na vida???".

Um beijo.

L. Rodrigues disse...

Na vida? Não, certamente. Aliás mantenho uma dúvida e um cepticismo que considero saudável em relação a muitas coisas.
E tenho imensas dúvidas no que respeita a levar à prática aquilo que vou concluindo.

Mas se olhares bem para as coisas sobre as quais manifesto certezas, são mais certezas sobre o que não é do que sobre o que é.
Como quem não sabe o que quer, mas tem a certeza do que não quer.

Como deves ter percebido já, sou essencialmente um materialista. Não o materialismo do "pilim", mas o materialismo como o que um filósofo americano define assim:

"Acredito na alma, mas ela é feita de pequenos robots".

Quanto à Natureza, ela não ten intenções.

Maria Carvalhosa disse...

Luís,

Que desfaçatez! Como podes afirmar, tão peremptoriamente, que a natureza não tem intenções?

Bj.

L. Rodrigues disse...

Porque não sou animista. Não vejo intenções no céu nem nos relâmpagos, no fogo ou no mar.

E também não há intenções no mecanismo da Evolução.
Ser "Mais evoluido" é uma assumpção que fazemos e que nos dá um falso sentido de linearidade e como tal de rumo e propósito "estamos a evoluir para qualquer coisa".
Mas se, por exemplo, a humanidade se extinguir por dar cabo do clima, "mais evoluidos" serão as formas de vida que ficarem. É tudo contextual.

Por isso não, não vejo uma intenção na natureza. Mas não a acho menos maravilhosa por isso. Muito pelo contrário.

Paulo Cunha Porto disse...

Meu Caro L.Rodrigues:
Quis responder-Lhe com uma poesia que sabia estar em qualquer sítio e só hoje encontrei, a qual chega a um resultado igualmente atingido pela ciência económica desde a descoberta das leis da Utilidade Marginal. Ou seja, o Homem desenvolve sempre novas necessidades materiais, a que corresponde muitas vezes a espiritual que identifica a felicidadde com o que o Outro tem e ele não.
Quando nos cansamos de tentar convencer-nos de que tudo vai bem, pomo-nos a invejar o Cro-Magnon. Daí a atracção ruralista nos repousos das classes possidentes e a ida à terra das menos favorecidas. O Cro-Magnon tinha grande vantagem sobre nós: não podia prever as benesses de um autoclismo. Não fosse isso e lá deixaria nalguma forma de arte primitiva o lamento por o saneamento básico não ter chegado à sua gruta.
Abraço.

redonda disse...

Gostei do que li aqui e hoje estava a pensar em algo parecido - onde está a felicidade (título também de um livro que li há muito tempo).

L. Rodrigues disse...

Redonda,
Renovo aqui as boas vindas e os agradecimentos. Embora vá deixar o assunto sossegado por uns tempos em termos de escrita, estou a carregá-lo na leitura, com mais um título que se chama, mal traduzido, "Tropeçando na felicidade". Só pelo titulo dá para perceber que o autor acha que ela anda aí, a gente é que não vê...

L. Rodrigues disse...

Caro Paulo,
Não consigo imaginar os problemas de higiene de um Cro-magnon, embora lhes agradeça a todos as imunidades que hoje tenho (temos...) graças à (aos olhos de hoje) imundicie em que viviam.

Lembra-me aqui, a propósito de excreções, uma história de um Aborígene Australiano que viu enojado um ocidental assoar-se e guardar o lenço no bolso. "Porque diacho estará este branco a guardar o ranho que lhe sai do nariz...???" terá ele perguntado a si mesmo.

A disse...

Está-se sempre bem neste lugar.
Ora se pensa mais a fundo, ora se aprende, ora se ri, ora se entende.
Queres vender-me este blog barato?;)
Beijos.

L. Rodrigues disse...

Pois se já o tens de borla...
;)