29 outubro, 2006

Ao menino e ao borracho

O que faz com que a percepção do sobrenatural seja tão generalizada na espécie humana? Porque é que a resposta: "foi Deus" satisfaz tanta gente?

A resposta à primeira pergunta parece estar em algumas peculiaridades da mente humana. Uma das coisas para que os humanos estão particularmente vocacionados, por comparação com outras espécies, é em perceber intenções. Mas quando isso se cruza com a nossa fraca intuição estatística, tendemos a considerar que há algo por trás de acontecimentos que são apenas geridos pelo acaso.

Outra particularidade da mente humana prende-se com um mecanismo de que já falei mais abaixo, aquilo que Dan Gilbert chama o sistema imunitário psicológico. O nosso cérebro tende a preferir a visão mais benévola e compensadora do que nos acontece. Por isso à medida que a vida nos leva pelos seus caminhos incertos, somos supreendidos com resultados positivos que não antecipávamos. Um facto surpreendente carece de explicação, e portanto o impulso é tentar perceber o que está por trás dele. Ou quem.

E quando alguém responde "Foi Deus", isso parece chegar para muita gente. Mesmo que na verdade não seja uma explicação. Mas o curioso é que para a maior parte das pessoas, na maior parte das circunstâncias, uma explicação já é suficientemente satisfatória se tiver forma de explicação, mesmo que não tenha o conteúdo.

O seu a seu dono, este post é um curtíssimo resumo de um artigo de Dan Gilbert "The Vagaries of Religious Experience".

Ele termina o seu artigo reafirmando que a ciência apenas pode refutar as representações mais folclóricas de Deus, e não a possibilidade da existência de uma força, entidade ou ideia superior que mereça tal nome. Mas o que a Ciência pode afirmar é que "o Universo é complexo, que as coisas fequentemente correm melhor do que esperávamos e que nenhum destes factos precisa de uma explicação externa a nós mesmos."

É um rapaz tolerante, o Daniel Gilbert.

24 outubro, 2006

Ideias perigosas

Ocorreu-me uma ideia perigosa acerca de ideias perigosas a propósito das reacções de indignação ao projecto de lei que visa penalizar em França a negação do genocídio Arménio pelos Turcos. À semelhança do que alguns países fazem acerca do holocausto Judaico.

A minha primeira reacção também foi, no mínimo, de estranheza. O princípio da liberdade de expressão que – quase – todos temos como bom é pouco compatível com este tipo de iniciativas.

Mas depois comecei a pensar. Os Memes de novo. Um dos corolários da Memética, ou pelo menos dos seus proponentes mais empenhados é que o mecanismo de selecção natural e evolução é um algoritmo independente do substrato. Ou seja, que a mesma relação que existe entre genes, se estende a qualquer universo de entidades com características idênticas.

Nesta visão do mundo os seres humanos são especiais na medida em que são veículos dos replicadores genes, e dos poderosos novos replicadores Memes. Estamos entalados, por assim dizer.

Os genes trouxeram-nos até aqui, mas são os memes que vão determinar para onde vamos. Durante a maior parte da sua existência a espécie humana não teve a capacidade de condicionar os seus genes. Isso é muito recente na nossa história evolutiva. Mas pela mesma razão que procuramos terapias genéticas para erradicar certos tipos de doença, não fará sentido encontrar terapias meméticas para erradicar certo tipo de ideias?

Se temos hoje as ferramentas para desafiar a selecção natural e em muitos casos não é conflituoso fazê-lo, porquê deixar que ela actue livremente num plano que afecta muitos mais de nós?

Porque se à partida todas as ideias deviam ser livres, nada nos diz que no fim são as melhores ideias que sobrevivem.

Serão as melhores no sentido evolucionista: são as melhor equipadas para sobreviver, porque são as mais intimamente ligadas aos seus portadores, porque são as melhores a erradicar as ideias que competem pelo mesmo nicho, porque se associam a outras que as ajudam melhor a sobreviver etc etc. Mas esta performance é moralmente neutra. Uma “Boa ideia” no sentido evolucionista pode causar muitas mortes, sofrimento, injustiça e todo o género de atrocidades. Basta olhar para a história das religiões e da política.

Aplicar isto ao exemplo com que comecei, não parece muito relevante, mas achar que as ideias podem andar à solta e que não temos o direito de tentar extinguir a que são más para nós não me parece que leve a grande futuro. Claro que se coloca sempre a questão: e quem é que define o que é uma ideia aceitável? O único critério que me ocorre, assim de repente, é olhar para o cadastro das ideias e contar os mortos, mas prometo pensar em outros.

18 outubro, 2006

9 minutos da vossa atenção

Não é por mim....

Não sei do que gosto de mais, se da história e da vontade de a contar, se do ritmo hipnótico da música ou se do violino deambulante...

11 outubro, 2006

Nós ou as cianobactérias.

Muito daquilo sobre que tenho escrito são coisas que se descobriram, investigaram e desenvolveram tendo por base fundadora o trabalho de Darwin.

A teoria da evolução trouxe uma clarividência e uma ordem à compreensão da vida que eram impossíveis de estabelecer antes dela. Normalmente os poucos, mas muito vocais, que se lhe opõem pouco mais fazem do que demonstrar a sua ignorância sobre o assunto em particular e sobre como se faz ciência em geral. A causa verdadeira é a defesa irracional e intransigente de uma ideia religiosa, que acaba mais prejudicada porque ridicularizada.

Mas mais mal ao bom nome de Darwin, na minha opinião, fazem aqueles que dizendo abraçar essas ideias, delas abusam.

Ainda recentemente li num outro blogue alguém colocar a seguinte questão, mais coisa menos coisa: "Não percebo porque é que aqueles que se opõem ao Criacionismo são os primeiros a levantar a voz contra o Darwinismo social."

Eu não sou um perito em filosofia politica, ou em qualquer outra coisa, mas esta afirmação encerra tantos equívocos que se me arrepiou logo a espinha toda.

Primeiro confunde desde logo uma posição estritamente ditada pelo entendimento e respeito pelo método científico com qualquer outra ditada por uma convicção ideológica.

Depois, talvez não claro na afirmação em si, mas fácil de ver no contexto da discussão o pressuposto de que Criacionismo e Darwinismo Social estão "à direita" e Evolução e Oposição ao darwinismo social (ou às nuances neo-liberais com tal carácter) estão à esquerda.
Uma muito pouco saudável mistura de alhos e bugalhos, teologia, política e ciência...

Outro equívoco é a chamada falácia Naturalista... A assumpção de que Natural é sinónimo de Bom. Que de resto é, creio eu, um dos fundamentos e erros básicos do Darwinismo Social enquanto doutrina. Se a natureza é assim, é assim que devemos ser.

E mesmo esta visão, errada em si mesma, encerra um outro equívoco sobre a Evolução, muito comum no século XIX e em quem tem um conhecimento demasiado superficial da ciência: a de que a Evolução é linear, direccionada, que o que vem depois é sempre melhor do que o que vem antes.

A selecção natural escolhe de facto os mais aptos a reproduzir-se e numa dada população são eles que dominam e prosperam (eles os genes). Mas essa aptidão é sempre Contextual. É função directa do meio ambiente. Hoje sobrevivem os que resistem ao calor, muda o clima e passam a sobreviver os que resistem ao frio, e assim por aí adiante.

Nesse sentido, seremos mais complexos, mas não somos mais "Evoluídos" do que uma cianobactéria que é basicamente igual há 4000 milhões de anos. Porque estamos ambos aqui, nós e ela. E ela pelo menos já deu provas de muito mais endurance...

O que a teoria da evolução aplicada às sociedades e culturas nos diz, é que as ideias ao agir como os novos replicadores egoistas- os famosos Memes-, podem determinar resultados biológicos que favorecem a sua sobrevivência mas não necessariamente a de quem as promove. E isso, sim, explica elegantemente a sobrevivência de muitas formas de ignorância.

08 outubro, 2006

A traça e a luz

Com os devidos cumprimentos ao Misantropo Enjaulado que recentemente teve um tópico com o mesmo título, ou semelhante, aqui ficam algumas ideias para acabar de vez com a felicidade.
Com o tópico. Neste blogue. Pelo menos, de vez por uns tempos.

Por aqui abaixo já percorri algumas das causas apontadas para a incongruente escalada de depressões, insatisfações e desesperos destas sociedades em que vivemos. Onde temos cada vez mais e menos nos parece satisfazer. Algumas são sociológicas outras psicológicas, condicionadas pelas primeiras.

Agora vou esplanar as pistas apontadas pelo psicólogo David Buss. É um psicólogo evolucionista que se especializou nas relações entre os sexos.

A psicologia evolucionista, para quem não estiver a par, é uma disciplina que procura identificar as características da mente humana que são adaptações evolutivas. Traços que ficaram por sofrer selecção positiva em determinada fase da história evolutiva da Humanidade, 99% da qual foi passada em sociedades de caçadores-recolectores.
Um exemplo simples: os traços que achamos atraentes estão correlacionados com, nos homens, status, poder e dominância, e nas mulheres com fertilidade, juventude e saúde. Isto são generalizações, é certo, mas confirmadas pela experimentação.

O primeiro factor que ele aponta é então a substancial diferença entre o ambiente primitivo e o actual.

Numa sociedade tribal de 50 a 200 individuos a escolha de parceiros estava limitada uma ou duas dezenas. Na sociedade actual os potenciais parceiros são muitos mais e ainda os comparamos a todos com o bombardeamento mediático de exemplares perfeitos e altamente desejáveis.
Na sociedade tribal vivia-se em nucleos familiares extensos, actualmente vivemos em familias reduzidas, frequentemente isoladas entre outras familias anónimas.
Antes, podiamos contar com os nossos parentes para conseguir justiça e reparações por danos, agora temos que confiar em estruturas externas e frequentemente complicadas.
Ou seja estamos equipados para actuar com segurança numa certa escala, que a complexidade da vida moderna rebentou completamente.

Outro factor, são as adaptações que causam stress. São desenhadas para isso. Sentimos emoções negativas quando o nosso papel sexual é posto em causa, quando a nossa posição social é ameaçada, quando somos enganados por amigos etc etc. Há uma série de emoções que existem e sentimos com fortemente negativas porque foram determinantes na selecção dos nossos antepassados. Os que não as sentiram, ou que não as sentiram tão fortemente, não deixaram descendência.

O terceiro obstáculo à felicidade é o nosso desenho para a competição. A evolução actua sobre as diferenças, por isso o ganho de uns é a perda de outros. Os alemães têm a expressão "Schadenfreude" que designa mais ou menos o prazer que se tem na infelicidade dos outros. Será por isso que não resistimos a rir quando alguém cai no ridiculo, nem que seja na proverbial casca de banana? O maior duplo padrão não é o que existe entre homens e mulheres mas sim o que se cria entre nós e o resto da humanidade.

Outros factores por ele identificados foram já ilustrados no post sobre Felicidade Sintética. A nossa capacidade de nos adaptarmos a uma nova situação faz reduzir a longo prazo os efeitos do que pensávamos ser uma grande coisa. Um outro relacionado está na nossa avaliação afectiva de ganhos e perdas. Ficamos mais tristes por perder do que ficamos contentes por ganhar. Perder 100 é muito mais penoso do que ganhar 100 é agradável.

Acho que a pedra filosofal desta coisa toda está em usar a inteligência.
Da mesma forma que a traça foi seleccionada para ser atraida pela luz, presumivelmente a da lua, e acaba morta contra uma lampada, também muitos dos nossos traços ancestrais nos causam mais mal que bem se deixarmos.

Temos sobre a traça a vantagem de conseguir, munidos da informação suficiente, olhar para as nossa emoções e impulsos e perceber de onde vêm e onde nos levam.

Podemos restabelecer um pouco do ambiente primitivo dando mais valor à familia e amigos e estabelecendo mais profundos laços sociais.
Podemos reduzir o impacto da competição, apostando na cooperação. Isto faz-se, por exemplo, não colocando um prazo nas relações. Enquanto o futuro percebido for de interdependencia, a melhor estratégia é a de cooperação.
Podemos procurar deliberadamente as coisas que proporcionam felicidade, afinal também elas seleccionadas pela evolução: ajudar os parentes e amigos, viver saudavelmente, sentir intimidade, etc.

Afinal, porque há-de a nossa felicidade ser determinada pelo que fazia um Cro-Magnon ter mais filhos?

Neste ponto pelo menos há que dar ouvidos à personagem de Katherine Hepburn em "A Raínha Africana":
"Nature, Mr. Allnut, is what we are put in this world to rise above."

03 outubro, 2006

Dogma

“O dogma oficial das Sociedade Industriais Ocidentais é algo como isto: Se pretendemos maximizar o bem estar dos nossos cidadão, a forma de o fazer é maximizar a sua Liberdade Individual. A razão para isso é que Liberdade é em si Boa, Valiosa. Essencial à condição humana, e se as pessoas tiverem liberdade cada um de nós pode actuar por si mesmo, fazendo as coisas que maximizam o nosso bem estar, e ninguém decide por nós. A forma de Maximizar a Liberdade é Maximizar a capacidade de Escolha.
Quanto mais escolha tivermos, mais liberdade temos, e quanto mais liberdade temos, maior o nosso bem estar.”

É assim que Barry Schwartz, professor de Sociologia e autor de “The Paradox of Choice” começa uma palestra acontecida o ano passado em Oxford.

Esta ideia está tão enraizada em sociedades e algumas ideologias vigentes que poucos são os que se atrevem a contrariá-la. Mas como acontece frequentemente nestas coisas, os factos são do contra.

No post anterior já tinha abordade a nossa inabilidade em prever certas condições futuras. A nossa avaliação da Liberdade de escolha parece ser um desses exemplos, e certamente não o menos dramático.

O excesso de escolha provoca, antes de mais nada, uma espécie de paralisia. Um exemplo simples e clássico: uma demonstradora num supermercado exibe 25 variedades de compota, e oferece um vale de compras. Outra exibe 6 e também oferece o mesmo vale de compras. O segundo exemplo origina 10 vezes mais compras, em média. É muito mais fácil escolher.

Mas feita a escolha, despoletam-se diversos outros mecanismos.
Primeiro, uma desmesurada subida das expectativas. Se vamos escolher uma coisa entre 50, o mínimo que esperamos é a perfeição. O potencial de desilusão é exponencial.

Segundo, pagamos aquilo que os economistas chamam “Custo de Oportunidade”. As potenciais boas coisas que preterimos tornam-se espinhos e grãos de areia na satisfação da nossa escolha. Quanto mais oportunidades de escolha, maior o custo de oportunidade.

Finalmente, quando a escolha nos desilude, culpamo-nos a nós mesmos. Com tanto por onde escolher, só pode ter sido culpa nossa.

Isto é verdade para objectos, coisas que se compram e que proliferam nas nossas sociedades de consumo, mas também é verdade nas nossas vidas pessoais.

Schwartz dá o exemplo dos seus alunos de pós graduação que vivem atormentados com as possibilidades que se lhes deparam: casar, ter uma carreira, ter filhos. Que devem fazer? Ter uma carreira e depois filhos, casar e ter uma carreira, e os filhos vêm depois? Não casar? Ele lembra o tempo em que se casava o mais cedo possível, tinha-se filhos o mais cedo possível, e a única escolha que se tinha que fazer era “com quem?”

A liberdade é essencial. Uma pessoa sem escolhas, não pode ser pessoa, não pode realizar o seu potencial humano. Mas ter a Liberdade como valor absoluto não só gera conflitos e paradoxos, quando as liberdade individuais infinitas colidem umas com as outras, como contraria o fim ultimo da liberdade que é a felicidade do ser humano.

Este é um problema peculiar das nossas sociedades de afluência material, e um racional que permite defender a redistribuição da riqueza não com base numa noção de justiça que é sempre julgada como ideológica, mas com base numa noção de eficácia. Se a busca de felicidade é o nosso mote, sejamos coerentes.