16 maio, 2006

Os telemóveis, as donzelas e a morte.

Volta e meia, somos presenteados no jornal da noite, ou numa primeira página qualquer, com mais uma infâmia que nos leva, dependendo normalmente do grau e proximidade, a exercer o nosso direito de indignação. Normalmente não passa do colega do lado, numa conversa do género "Já viste o que aconteceu ali? É incrível! Em pleno século vinte! Vinte e um, aliás!" e por aí fica.

Infelizmente muitas mais há que não são apanhadas com a mesma frequência e atiradas para as prioridades das preocupações do mundo. Neste momento poucas devem ser mais trágicas do que o que se passa na Republica Democrática do Congo.

O Congo, ex-Belga, ex-Zaire, é neste momento um país que mal existe, depois de conhecer uma guerra pavorosa entre 1998 e 2003-o fim oficial do conflito. O território continua politicamente fraco, dividido ente milicias locais e milicias de países vizinhos, com os habituais traços tribais desta parte do mundo. O facto de a dita guerra ter sido o conflicto que mais mortes causou desde a Segunda Guerra Mundial, parece não ser o suficiente para mobilizar vontades internacionais. Afinal tudo se passa no coração mais negro de África, onde tudo é ainda tão selvagem, "eles que se entendam". Não é nada connosco. Era bom se fosse tudo assim tão fácil para as nossas consciências.

No meio dos conflitos tribais há um tema que sobressai. A luta pode ser ancestral, mas o que a sustenta actualmente, é bem deste século. O Congo contem 80% das reservas mundiais de Coltan. Um mineral que contém Nióbio e Tantalo, este metal é usado na construção de condensadores, um componente fundamental dos telefones celulares e computadores portáteis.

Este mineral é recolhido por mão de obra escrava ou semi escrava sob o controlo das milicia locais e, de uma forma geral, encaminhado (contrabandeado) para um dos países vizinhos, Rwanda, Uganda e Borundi, e daí exportado para as indústrias high-tech do Hemisfério Norte.

Uma das características do conflicto é a extrema violência sexual exercida sobre as mulheres.
No hospital de Bukavu as vitimas chegam frequentemente, quando vivas, violadas por bandos e depois baleadas. Tão jovens como 3 anos de idade, tão idosas como 78. Mais do que a violência caracteristica dos vencedores sobre os vencidos em cenários de guerra, estes actos são usados como táctica de desmoralização das populações. Com assinalável sucesso.

Estima-se, e pouco mais se pode fazer do que isso, que centenas de milhares de mulheres sejam anualmente vitimas desta guerra que oficialmente terminou.

Oficialmente, também, a indústria evita a compra das matérias primas de origem duvidosa. Alguns fabricantes terão boicotado completamente a compra de Coltan Africano, adquirindo-o noutras partes do mundo como a Austrália.

Ler o artigo que recentemente me voltou a lembrar deste conflito é penoso. É dificil não ficar com um nó na garganta, e com os punhos cerrados de revolta e impotência. Nas palavras de uma mulher que trabalha todos os dias numa mina para alimentar a sua familia são "as pessoas mais infelizes do mundo".

7 comentários:

José, o Alfredo disse...

Dificilmente se pode subestimar o contributo para esse estado de coisas do inigualável Mobutu. Nasceu Joseph-Désiré Mobutu mas lá foi tratando de se engrandecer ao ponto de já não caber em tão singelo nome. O que reza na tumba, onde um cancro da próstata (a que, neste caso, só se pode chamar benigno) o conduziu, é Mobutu Sese Seko Nkuku Ngbendu wa za Banga. Como tudo o mais, deve ter roubado os nomes a alguém.

L. Rodrigues disse...

Mobutu com os diamantes, e o rei Leopoldo da Bélgica com a borracha, agora mais esta... Uma longa tradição de exploração e desumanidade.

marta r disse...

É chocante e inadmissivel.

L. Rodrigues disse...

Uma maneira de ajudar, é ajudar a AMI. Eles estão lá.

Anónimo disse...

Partilho, sem qualquer reserva, do sentimento generalizado de revolta que notícias deste tipo geram, legitimamente. Contudo, não gostaria de deixar apenas esta mensagem de solidariedade, que nada contribui para mudar o estado de coisas em países como o Rwanda, Uganda e Borundi. É que a situação merece reflexão e consequente aprendizagem. E não é preciso andar muito tempo para trás. Bastam 20, 30 anos. O momento histórico, ao qual poderemos, um pouco levianamente, atribuir responsabilidades aos Estados colonizadores, teve o envolvimento e a benção das populações, de pensamento aberto, modernas, cultas e politicamente maduras, desses mesmos Estados. Hoje revoltamo-nos mas esquecemo-nos que ontem os entregámos ao seu, impróprio e ignóbil destino. "Pois, mas nós não sabíamos" dirão alguns. Pessoalmente não aceito. A História já nos tinha dado exemplos no passado. Mas a nossa maturidade política, modernidade, cultura acima de qualquer suspeita e defesa dos interesses mais elevados da independência e democracia cegaram-nos. Esquecemo-nos de um valor mais alto: o da vida humana. Outros dirão: "este gajo deve ser fascista, conservador, de direita". Enganam-se, mas não é por aí que o meu tempo vai ser desperdiçado. Fica a opinião. Porque havemo de cometer todos o mesmo erro, mais vezes. E vamos sempre achar que estamos a defender interesses elevados, cegos pelo esteriotipo da nossa cultura ocidental.

L. Rodrigues disse...

Neste caso particular a história de sofrimento imposto de fora vai até ao rei Leopoldo da Bélgica que daquilo dispinha como seu couto privado, com recurso aos mais desumanos meios. E também poderiamos interrogar que destino teria tido o país, se o seu únco presidente eleito tivesse exercido mandato. Teve o azar de ser considerado comunista pela CIA... entra o Mobutu em cena...

Anónimo disse...

Nesse caso em particular tens razão. No Uganda também, com um senhor chamado Idiamin (não sei se é assim que se escreve). Mas há outros em que não é bem assim. E não temos que oljar para o lado. Basta-nos olhar para dentro, para a nossa História contemporânea.