Suponho que seja um dilema mais ou menos constante para quem pensa nestas coisas (o estado do país, da sociedade, da Europa, do Mundo). Onde é que podemos deixar de dizer e assumir que temos culpa, responsabilidade, e passamos a apontar o dedo aos "outros". Os proverbiais "eles" das conversas de café.
É inegável que há uma dimensão colectiva nas nossas existências. Nós, enquanto país, nação, povo, temos tido dificuldade em encontrar formas de assegurar minimos decentes de sanidade política, social e económica. Mas quando debatemos estes assuntos, com frequência atribuímos a culpa dessa incapacidade a "eles". "Eles" são os que detêm o poder político e económico, os que detêm a capacidade de fazer, decidir, agir a níveis que afectam muitos, ou todos.
É culpa nossa, em boa medida, que "eles" exerçam esse poder de forma distorcida, discricionária, para provento de poucos, à custa de todos. É culpa nossa, porque "Eles" não o fariam dessa forma se não o pudessem fazer com a impunidade que a nossa complacência, resignação e em certa medida cumplicidade lhes permite.
Hoje de manhã ouvia a eurodeputada Ana Gomes falar sobre a Grécia. Lá vive-se um enorme tumulto social e político. A voz oficial dos media diz: Os Gregos andaram a viver acima das suas possibilidades e, ainda mais, aldrabaram as contas que tinham que prestar ao Euro: ou seja, foram gastadores e fraudulentos.
Neste caso, o "Nós" grego está condenado a uma sessão pública de auto flagelação pelos seus pecados por muito e maus anos.
Mas nesta história também há "Eles" gregos. Os gastos excessivos do governo grego têm correlação com contratos multimilionários feitos com recurso a luvas, corrupções diversas e compadrios múltiplos. Quem envolvem equipamentos para os Jogos Olímpicos, material militar diverso, etc etc.
"Eles" são todos os decisores que traíram a confiança do povo grego, abusando das suas posições para fazer negócios ruinosos para provento próprio. (Não sei como é na Grécia, mas cá todos sabemos de que tipo de pessoas falamos e é vê-los a saltar de partidos para empresas e vice-versa).
Mas "Eles" também são os decisores alemães. Que do outro lado da mesa de um corrupto, há um corruptor. E muitos daqueles contratos multimilionários foram feitos com empresas alemãs, que estão sob investigação na Alemanha.
A Alemanha, no entanto, pela voz dos seus dirigentes trata a Grécia como uma espécie de indigentes terceiro mundistas que não se soube governar, mesmo com estes processos a decorrer internamente.
"Nós", temos uma responsabilidade individual, mas a maior parte de "Nós" pode quando muito dar um bom exemplo a meia dúzia de pessoas, ajudar de forma solidária mais umas quantas, podemos ser honestos e exigir honestidade em nossa volta. Mas o nosso poder de exigir esbarra frequentemente muito perto, por vezes logo nas relações de trabalho, por exemplo.
Logo aí, se calharmos a ter azar com o superior ou o patrão, já somos reféns da nossa própria subsistência. Se de nós dependem outros então a vulnerabilidade é ainda maior. E logo aí há uma relação de poder assimétrica. "Ele" põe e dispõe.
Apontar o dedo a "Eles" não é descartar a nossa propria responsabilidade, não é uma desculpa nem um acto de resignação. Provavelmente, é a única forma numa sociedade democrática e funcional de colocá-"los" em cheque. De "Os" lembrar de que o poder que têm e que tão mal usam lhes pode ser tirado se abusarem, se esticarem a corda e se insistirem em ser indiferentes às consequências dos seus actos.
A insistência na responsabilidade individual, em que cada um tem que cuidar de si e só de si, é o alibi que "eles" usam e que mais lhes convém.
É afinal é o truque mais velho do mundo: dividir para reinar.