02 novembro, 2009

o mal

Com alguma frequência, dou por mim a defender o indefensável.

A ultima ocorrência ocorreu por esses blogues fora. Um comunista, presumo, tentava explicar que sim, que houve erros, mas que não se podia ignorar o que tinha acontecido na rússia, e depois na união soviética, em termos de progresso industrial e científico, de artes, de, inclusive, progresso social e outros. De facto a Rússia czarista não tinha nada que ver com o país que mais determinante foi na derrota do nazismo, nem com o que colocou satélites no espaço.

(antes que me alargue, um "disclaimer": não sou nem nunca fui um entendido neste assunto, não conheço mais do que os protagonistas mais salientes e algumas pinceladas muito grosseiras sobre os diversos periodos em que se poderá decompor a história do século 20 à luz da revolução de outubro)

Claro que para um crítico da "experiência soviética" nada disto conta. E criticos não faltaram àquele comunista. A sombra de Estaline paira demasiado escura. Qual buraco negro, suga qualquer luz que pudesse vir daquele periodo histórico.

Acontece que, frequentemente, muito frequentemente, e recentemente tivemos exemplos disso, os que condenam o comunismo, identificando-o exclusiva e totalmente com o estalinismo, são os mesmo que defendem, defenderam, que quando se fala da Igreja Católica, ou da religião em geral, temos que deixar de lado todas as atrocidades cometidas em seu nome, ou de um deus qualquer, para nos concentrarmos nos homens de bem, nos santos, no conforto que as pessoas encontram na religião, etc.

Por outro lado, uma rejeição do comunismo baseada no número de mortos causados pelos regimes por ele inspirados, não pode deixar de ser acompanhada de uma rejeição do capitalismo pelas mesmíssimas razões e ordens de grandeza. É uma história menos contada, mas também está aí para quem quiser. Mas poucos querem fazer as duas críticas, ficando cada um do seu lado da trincheira.

Para mim, isto são dois pesos e duas medidas. E sobretudo ofusca a verdadeira causa do mal.

O comunismo não mata. Tenho para mim que o que mata é o autoritarismo. Mata em regimes comunistas, em regimes fascistas, mata em democracias, mata na Terra Santa e no Cambodja. Matou nas fogueiras da Inquisição, e nos Gulags da Sibéria antes e depois de 1917. O autoritarismo é o que torna o diferente abominável e a dissidência criminosa. É o que motiva multidões cegas de fúria, e legitima os carrascos e a desumanização das suas vitimas.

Podemos discutir se o autoritarismo é intrínseco ao comunismo, se este não pode existir sem aquele, da mesma forma que o é ao fascismo. Não tenho a certeza de que seja, já que por esse mundo fora também inspirou movimentos cuja bandeira foi sobretudo a liberdade, contra ditaduras tão sanguinárias como a de Estaline mas que estavam do lado oposto do espectro político. Mas reafirmo a minha incapacidade para debater profundamente todas as possibilidades abertas por este campo de ideias, e a sua adequação a contextos específicos ou genéricos da experiência humana.

Talvez estejam condenadas a serem o Papão, que mete as crianças na ordem.
Mas às vezes parece que, se não for o medo do Papão, as crianças recusam a sopa e não crescem.

5 comentários:

CPrice disse...

Confesso que não estava à espera desta conclusão Caro L., como que uma justificação (?)

.. ainda sou mais leiga que o que assume por aqui neste texto brilhante mas acredito na ideologia, tento praticá-la e na maioria das vezes consigo, mas desconfio, sempre e à partida (injusta? também) dos grandes profetas que em nome de um ideal manipulam, julgam e castram.

Anyway .. já me conhece o suficiente para percerber que sofro mesmo é de uma utopia incurável não é?

:))

L. Rodrigues disse...

Cara Miss Once,
Por vezes acusam-me de ser sinuoso (não os meus comentadores, mas em respostas a comentários que eu próprio faço noutros sítios). Isso deve-se provavelmente ao meu método, ou falta dele.

Neste caso, por exemplo, o que eu me propunha era denunciar alguma desonestidade argumentativa, um duplo padrão, com que se julga um conjunto de ideias.

Mas os meus textos frequentemente ganham vida própria, e são tomados de assalto pelas reflexões que me suscitam. Raramente já levo a conclusão quando parto para eles.

O autoritarismo surgiu já a meio (se estou para aqui dizer que o comunismo em si pode não ser o mal, qual será então?), e o Papão, então, esse foi mesmo no fim...

Na verdade uma expressão pueril do duplo movimento de Karl Polanyi, que cada vez mais considero o conceito fundamental para compreender a dinâmica politica das sociedades.

CPrice disse...

.. com um pé bem assente na sociologia que me é tão cara e cá de casa Caro L., e ainda no outro dia eu explicava à minha mais que tudo os princípios do mercantilismo.

Enfim .. perfeição não creio que atinjamos algum dia mas que me é muito grata esta troca de opiniões isso é, e hoje tenho de lho dizer.

Votos de um bom dia.

mike disse...

Eu cá acho que és um perigoso manipulador, assente numa escrita tão sedutora que nos faz crer que tem vida própria. O pior é que, com alguma frequência dou por mim, aqui, a atacar o inatacável. Manipulador!

L. Rodrigues disse...

Ora Mike.
Aqui não há ingénuos que se deixem manipular.