30 setembro, 2009

Memória do presente. (um post a dar para o longo).

Há muitos anos, quase noutra vida, terminei o liceu e fui para a universidade.
Corria então o ano de 1984.
Um colega de curso e amigo um dia chegou ao pé de mim e disse: "Tive um sonho, vamos fazer uma República". Devo ter pensado algo do género: "Porque não?" que é o género de coisas que penso.
A nossa motivação era simples. Tínhamos um certo fascínio pela tradição coimbrã, com o fado, as tertúlias, e a vida da Cidade, e a noção de que essa experiência apenas seria vivida em pleno se vivêssemos numa República.
Em pouco tempo arranjaram-se mais 5 interessados e uma casa onde cabíamos todos, e não custava tanto que se tornasse um peso nas nossas semanadas. No ano lectivo seguinte, já lá vivíamos todos.
O passo seguinte era oficializar a República. Sim, porque uma república está sujeita a um estatuto legal, publicado em Diário da República (a de todos). Rezava então que a legalização de uma república depende da aprovação do Conselho de Repúblicas, se estiver em actividade, e na ausência deste, dos órgãos associativos estudantis (a AAC) com o aval da reitoria.
Ao tempo, o Conselho de Repúblicas não reunia desde 1969, altura das crises académicas. Por isso fomos falar com a Associação Académica. "Com certeza, avancem!".
Audiência com o reitor? "Não... com o vice-reitor, sim". Uma formalidade certamente... Aqui começa a conversa do "ah e tal... não sei..." A reitoria aparentemente não se queria comprometer sem ter um parecer das outras republicas.
Como nem sim nem não antes pelo contrario, encolhemos os ombros e pensámos: que se lixe.... Colocámos a placa, "Real República dos Mimosos do Calhabé", um nome adequadamente parvo. Hasteámos a bandeira, e tentámos vender uns autocolantes para arranjar umas massas.
Resultado: por causa de nós, uns miúdos que só queriam brincar aos estudantes, o Conselho de Repúblicas reuniu pela primeira vez em 25 anos.
Cabe aqui dizer que ele não reunia, entre outras razões, porque aquela gente não se falava. Cada República de Coimbra era herdeira de uma qualquer estirpe de "esquerdismo", uns eram alinhados pelo PCP, outros do PS, outros Anarcas, outros trotskistas outros maoistas... era à escolha. Algumas até conviviam com outras, mas não passava dai.
Reúne então este Conselho, para nos dizer que "Não!"
"Não?"
"Não".
"Mas reunimos todas as condições previstas quer na lei quer no código da praxe!"
"Ah, mas nós agora arranjamos aqui umas regras e é preciso ser primeiro "casa comunitária" depois "Solar", e só finalmente "Republica". E Real República (como nós ousadamente nos tínhamos intitulado) isso só mediante mérito reconhecido pela academia... laá lá lá lá llá lá..."
Ok...
Originalmente, no século 19, Republica era qualquer casa em que estudantes viviam autonomamente. Normalmente chamava-se a "Republica de fulano", sendo "fulano" o líder natural e carismático do grupo, caso houvesse um. Eram coisas informais sem mais história do que a vida dos que a constituíam, enquanto a constituíam.
(Pessoalmente foi sempre nesse espírito que encarei o projecto, embora houvesse outros que tinham a esperança de estar a criar algo mais perene.)
Imbuídos desse espírito, e afastado que estava o apoio do conselho (ok.. acho que podíamos ser "casa comunitária".). Borrifámos-nos para eles todos.
"Se numa monarquia é rebelde fazer uma republica, já que estamos em república vamos fazer um Principado. Fazemos as nossas próprias regras."

Quanto às partes práticas, falámos com o director dos serviços sociais que nos deu uma equivalência a republica, no sentido de adquirir produtos frescos para cozinhar em casa (uma das condições de ser republica é comer as refeições em casa, versus na cantina).

E assim foi fundado o Principado, desta vez com o nome de Bu-Falos-Bilis (um nome ainda mais parvo), que havia um membro descontente com o nome inicial. E assim ficou, enquanto durou.

Porque é que me lembrei disto tudo hoje? Porque quando as instituições falham, ou se viram de costas para a realidade, concentradas que estão nas minúcias do poder, a vida das pessoas continua e o que nós queremos individual e colectivamente é muito mais importante.
Porque o poder, o real, está sempre na nossa vontade. Coisa que parece cair no esquecimento logo no dia a seguir às eleições.
Aproveito para mandar um abraço para o José Pedro, para o Miguel, para o José Carlos, para o "Mosca", para o Pina, para o José Paulo, para o Pedro Ivo e para o "Grego" , que não me lêem, mas que comigo viveram esta história. E já agora para o João Vasco, para o "Javali", para o Zé Nuno e o "Garrano" que por lá passaram e marcaram.

5 comentários:

CPrice disse...

"... nós queremos individual e colectivamente é muito mais importante" (...)

Sem dúvida que um pensamento recorrente por aqui que aprendi a respeitar e com o qual hoje em dia não posso concordar mais.

a história é uma delicia caro L. e a sua memória dela muito a propósito do que nos rodeia.

L. Rodrigues disse...

Obrigado, Mis Once.
Ainda acrescentei mais uns amigos lá na parte em que falo deles. O texto está complicado de editar, que quando faço copy/paste do word para o Blogger, aquilo vem sempre cheio de artefactos de html... (o que também serve de desculpa para não corrigir as multiplas gralhas).

Mike disse...

Um abraço para ti. Eu tinha memória que escrevias bem e afinal parece que ela não me pregou nenhuma partida.

Anónimo disse...

Luis...viva US-DE-NEGRO, viva os MIMOSUS DO CALHABÉ...PRINCIPADO BU-FALOS BILIS para a ETERNIDADE...
SABE BEM 15 ANOS DEPOIS DE TER SAÍDO...CONTINUAR A SANTIR A FORÇA DA MEMÓRIA DAQUELE 2º ANDAR DA RUA DO BRASIL...OU DIREI DA FONTE DA CHEIRA.

Carlos Polainas

Anónimo disse...

Tive uma breve passagem por este principado, mas marcante que foi. Encontrei só pessoas 5 estrelas desde o Polainas e a namorada, ao Walter, ao Pacheco e ao Zé. Já se passaram qs 18 anos mas ainda me lembro da aventura que era descer umas escadas em risco de derrocada e a super camaradagem do pessoal. E não tive de passar a noite no caixão ...lol.

um abraço a todos,
Carlos Gil